Durante oito meses, Paulo Henrique Silva partilhou as primeiras horas de parte das suas madrugadas na companhia dos casais de cagarros na costa dos Altares. Da observação de uma colónia de cagarros na costa dos Altares, composta por mais de 70 casais reprodutores (mais de 500 aves) resultou uma instalação de som e imagem, patente no Museu de Angra do Heroísmo, e um disco com esse material.“Observei, durante a noite, o desenvolvimento de quatro ninhos, fotografando e gravando a actividade de quatro casais reprodutores, desde a sua chegada à colónia ao nascimento e crescimento das crias, passando pela reprodução e nidificação”, explica o investigador.Dessa observação resultaram as 30 fotos que o autor mostra na instalação, que congrega uma projecção multimédia e a apresentação dos sons destas aves durante aquele período.“O disco comporta mais de 160 fotos, 27 minutos de som, com os cantos emitidos pelos cagarros no período nupcial, um texto do professor universitário Félix Rodrigues, as minhas notas de campo, além de estatísticas e mapa de localização desta sub-espécie”, adianta o autor.FASCÍNIOUma das questões que se impõe na conversa com o autor é saber o porquê de abdicar de horas de sono para partilhar com os cagarros o período nocturno.Paulo Henrique Silva ri com a questão. E responde de imediato: “fascínio”.“Tenho um fascínio pelos cagarros. Aliás, acho que ninguém consegue ficar indiferente aos cantos dos cagarros aqui nos Açores. Até aos meus 13 anos, nunca ouvi falar de cagarros, nem os conheci. Aos 15 anos, numa viagem a São Jorge, onde fui passar umas férias a casa de um familiar na Ribeira Seca, ouvi, durante a noite, os cantos dos cagarros. Nessa noite nem dormi. E na manhã seguinte, explicaram-me tratar-se de cagarros, uma ave que não conhecia. Aí ficou o fascínio por essa espécie, sobretudo pelos seus cantos”, recorda.Anos mais tarde, usando as suas capacidades técnicas – Paulo Henrique é técnico de som na delegação da Terceira da RDP/Açores – o investigador tem vindo a gravar os cantos dos cagarros.“Em 2005, juntando esses trabalhos experimentais e o gosto pela observação de aves, decidi fazer algumas incursões em colónias de cagarras, para tentar perceber onde fazem os ninhos, que espaço ocupam, etc. Já nessa altura, tinha a ideia de realizar um trabalho desta natureza. Um ano depois, avancei decididamente para o terreno, tendo este trabalho resultado de oito meses de observações regulares em ninhos da colónia na orla costeira dos Altares”, explica Paulo Henrique Silva.O resultado desse fascínio está patente ao público no Museu de Angra do Heroísmo até Setembro deste ano.“Esta instalação liberta-nos dos parâmetros habituais de uma exposição. Podemos estar a ver fotografias retro-iluminadas, onde o som sai da própria imagem, como se de um filme se tratasse. Cria-se assim uma envolvência cénica que nos dá maior liberdade, criando-se também outra perspectiva para quem visita o espaço”, explica o autor das imagens e do som.Além deste trabalho, as imagens e os sons destas expedições estão inseridas num disco, que conta ainda com as notas de campo do autor e vários textos de suporte.Uma das “proezas” deste trabalho é a gravação sonora dos cantos nupciais dos cagarros.“Possivelmente, pelos contactos que estabeleci, esta foi a primeira vez que se fez um registo de som completo de todo o processo de nidificação e reprodução do cagarro”, explica Paulo Henrique Silva.ESPÉCIE PROTEGIDA“Actualmente, penso que os açorianos já interiorizaram a protecção do cagarro. Aliás, os resultados da campanha SOS Cagarro – e a sua própria existência – parecem-me prova disso. No entanto, é preciso não esquecer que esta espécie já sofreu muito com a predação humana”, explica Paulo Henrique Silva.Os cagarros, desde o povoamento, eram mortos para fazer das penas o interior das almofadas, para comer – “há uma série de receitas no receituário tradicional em algumas ilhas do arquipélago que usam cagarro, caso de Santa Maria ou da Graciosa” – para servir de isco na pesca, etc.Félix Rodrigues, num texto científico inserido no disco que complica o trabalho de Paulo Henrique Silva, exemplifica: “A predacção humana ao cagarro iniciou-se logo aquando do povoamento das ilhas açorianas. Gaspar Frutuoso refere que na ilha de Santa Maria “os tomavam com paus às trochadas, enchendo assim sacos deles, de que faziam muita graxa (gordura) e outros escalavam e punham a secar como pescado para depois comerem”. Dos cagarros a gente de Santa Maria aproveitava também as penas para encher almofadas e colchões. Afirma-se informalmente, na ilha de Santa Maria, que o cagarro era ainda há poucos anos um prato muito apreciado que só perdeu interesse com a proibição de apanha dessa ave. A carência de recursos nutricionais na Região Açores levou a que se adquirissem novos hábitos alimentares e se dessem utilizações específicas aos produtos derivados das aves marinhas”.Os cagarros – conta Paulo Henrique Silva – eram também usados como cura medicinal, particularmente a sua gordura, uma matéria-prima muito preciosa pelas suas alegadas qualidades medicinais.“Havia uma exploração do azeite de cagarro. As pessoas iam aos ninhos, retiravam as crias em fase de crescimento, viravam-nos para baixo e o óleo estomacal das crias era derramado num recipiente. Esse óleo tinha qualidades medicinais e era considerado milagroso. Era usado em feridas de animais, em feridas humanas, em entorses, em lesões musculares. Há 20 anos atrás, um quarto de litro de azeite de cagarro custava mil escudos. Aliás, nessa época havia quem considerasse a época dos cagarros como uma segunda vindima. Claro que, no caso da recolha do óleo, as pessoas recolocavam as crias nos ninhos, voltando quatro ou cinco dias depois para nova recolha”, recorda o investigador terceirense.Aliás, durante as observações de Paulo Henrique Silva, as alegadas qualidades medicinais do seu óleo estomacal podem tem ser observadas: “em Setembro, observei uma cria que tinha uns tumores no bico. Enviei essas imagens a alguns especialistas do Departamento de Oceanografia e Pescas, que me disseram desconhecer o problema, assumindo poder tratar-se de algum tumor. O que é certo é que, passado algum tempo, esses tumores desapareceram por completo. Daí que possa haver alguma ligação entre esse facto e as propriedades medicinais do seu conteúdo estomacal”.“Era crença popular que tais propriedades do azeite do cagarro, quase milagroso, também eram reconhecidas por médicos veterinários, que afirmavam sará-los rapidamente. De facto, alguns óleos de peixe têm propriedades anti-inflamatórias, reduzem a dor e têm na sua composição substâncias orgânicas capazes de sarar feridas. Não existe no entanto um estudo científico aprofundado sobre a composição do azeite de cagarro e das enzimas que lhes estão associadas que permita afirmar com objectividade que essas aplicações efectivamente funcionavam”, complementa o professor universitário Félix Rodrigues.Actualmente, a maior ameaça à espécie são os carros. Mesmo assim, os números não revelam alarmismo.“Apesar de não haver estudos pormenorizados sobre o impacto de cada uma das ameaças anteriormente referidas, crê-se que a percentagem de indivíduos mortos por colisão ou atropelamento nos Açores seja muito reduzida em termos percentuais ou mesmo em termos absolutos, e que a captura por vandalismo ou para isco, seja marginal e difícil de praticar dada a sensibilidade da população local para esta questão. Relativamente à destruição de habitats, a ocorrer não é predominantemente nas zonas de falésia onde normalmente estas aves nidificam ou nas Zonas de Protecção Especial das ilhas açorianas. A actual predacção humana a esta espécie é muito reduzida comparada com o passado recente”, revela Félix Rodrigues.APROVEITAMENTO TURÍSTICOPaulo Henrique Silva, em declarações ao DI, assume que a predominância dos cagarros nos Açores pode ser uma mais-valia para o arquipélago. Contudo, realça que ainda não é tempo de aproveitar essa potencialidade em termos turísticos.“Na observação de aves, uma das acções mais fascinantes é a observação de colónias de aves marinhas. Porque podemos observá-las nos seus habitats terrestres, da sua nidificação e reprodução. Isso é muito importante para os ornitólogos, ou seja, para quem observa e estuda as aves. Ora, os Açores têm uma riqueza enorme sobre esse ponto de vista. Entre Fevereiro e Março temos a maior parte das nossas encostas habitadas por espécies marinhas”, reconhece.No entanto, sublinha: “Discordo que, neste momento, se aproveite turisticamente essa potencialidade no arquipélago. Uma coisa será observar a aproximação dessas aves à ilha, os seus cantos, etc. Outra coisa será observar o seu quotidiano no terreno. Ora, aceito que se faça o aproveitamento da primeira parte, mas discordo da segunda, apenas porque, neste momento, não há qualquer monitorização da sua presença nos terrenos que ocupam. Sem esse conhecimento, e sem uma fiscalização eficaz, será impossível protegê-los da presença humana, mesmo que esta nem tenha intenção de os afectar. Mas, a partir do momento, que haja esse conhecimento, acredito que seja possível potenciar essa potencialidade”, assume o investigador terceirense, embora argumente que essa observação turística terá de ser pontual em determinadas colónias, para evitar o contacto excessivo com a espécie, com os problemas inerentes a essa situação”.O observador de aves reconhece que as ilhas têm potencial natural capaz de justificar o aproveitamento turístico. “Há uma enorme diversidade, deste a flora à geologia, que pode ser usada como atractivo turístico. Neste momento, está-se a falar e a pensar nisso”, assume.“Há gente que cá vem para apanhar sol – o turista-camarão. Mas o turista-camarão, se tiver hipótese de conhecer outras coisas além do sol e da praia, ele aceita essa oferta e vai conhecer outras coisas. Mas é preciso que as coisas estejam preparadas para isso. Sei que se está a pensar nisso, porque ouço falar nisso”, sublinha.“É preciso não esquecer que, até há pouco tempo, a promoção da imagem dos Açores no exterior era feita à custa de espécies infestantes ou espécies importadas: a hortênsia (oriunda do Japão), a roca-de-velha (trazida dos Himalaias) e a gaivota (uma espécie necrófaga). Portanto, isso é revelador do pensamento que existia. Acho que as coisas têm vindo a mudar, sobretudo as mentalidades. Vamos a ver onde tudo isto vai dar”, refere.CAGARROS NO MUNDOSegundo Félix Rodrigues, “Cagarro ou cagarra é uma palavra que designa maioritariamente a ave Calonectris diomedea borealis, da família Procellariidae e ordem procellariiformes, comum às ilhas dos Açores, Berlengas, Canárias e Madeira. Cagarra também pode querer designar a Pardela-de-bico-amarelo (Calonectris diomedea diomedea) cuja distribuição está associada a zonas temperadas e subtropicais do Atlântico Norte e Mediterrâneo”.“Na Europa – escreve o professor universitário, num texto que acompanha as imagens e sons de Paulo Henrique Silva - existem duas subespécies de cagarros com distribuições espaciais distintas: a Calonectris diomedea diomedea, no Mediterrâneo, nomeadamente na Croácia, Espanha, França, Grécia (ilha de Kos), Itália (Sicília), Malta e Turquia e a Calonectris diomedea borealis, de constituição mais robusta do que a primeira que se reproduz essencialmente nas ilhas anteriormente referidas”.Estima-se que, actualmente, existam nos Açores cerca de 188 mil casais reprodutores da subespécie C. d. borealis, o que representa 64,7 por cento do total de casais reprodutores a nível mundial da espécie Calonectris diomedea e 75,7 por cento do número de casais reprodutores a nível mundial da subespécie Calonectris diomedea borealis.Esta espécie está protegida nos Açores por diversa legislação. A costa da ilha do Corvo, a costa sul, sudoeste e nordeste da ilha das Flores, os Capelinhos na ilha do Faial, as Lajes do Pico, Ponta da Ilha e Santo António na ilha do Pico, o Ilhéu do Topo e costa adjacente em São Jorge, o Ilhéu de Baixo e Ilhéu da Praia na Graciosa, a Ponta das Contendas e Ilhéu das Cabras na ilha Terceira, e o Ilhéu da Vila e costa adjacente em Santa Maria são as áreas regionais onde as zonas de nidificação do cagarro estão protegidas por lei.
PAULO HENRIQUE SILVAFascínio pelas Cagarraspor: Rui Messias
Diário Insular -27-05-2007
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